quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

LUIZ GONZAGA 100 ANOS

LUIZ GONZAGA A RESISTÊNCIA DE UM CANTADOR

A poesia do povo, tradicional ou improvisada, transformada em canção, é um dos fenômenos mais ricos da cultura popular, pelo enfoque permanente de elementos históricos, tradicionais, emocionais e sociais. Segundo Charles Perrone, cientista social, os valores, as tradições, os usos, costumes, ideais, opiniões, diversões e inquietudes do povo, estão presentes na vasta gama de expressão contida nos cantares do homem comum.

Primeiro a tradição oral, depois os registros de cordel, os violeiros, cantadores, artistas mambembes, o circo, o povo e a praça, os primeiros registros de estudiosos interessados no resgate dessas manifestações, promoveram o reconhecimento e aprimoramento do caráter do Nordeste brasileiro.

No início do século, foi o teatro, o meio de comunicação que aproximou as classes mais privilegiadas dessa cultura de uma identidade, reconhecidamente, brasileira.

Através dos compositores e intérpretes de lundus, essa cultura popular e folclórica, era amplamente divulgada, desaguando, em seguida, na indústria do disco, cuja história teve início a partir de 1902, no Brasil, com a música “Isto é bom”, lundu de Xisto Bahia, na interpretação do então, famoso intérprete Baiano, para a Fábrica Zon-no-Phone.

Os Estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Ceará, principalmente, fontes inesgotáveis do cancioneiro popular, foram responsáveis pela migração para o sul de um grande número de artistas que, na segunda década do século, tornariam, em pouco tempo, conhecidas e apreciadas as temáticas poético-musicais mais populares na região nordestina. Nomes como João Pernambuco, Minona Carneiro, Jararaca e Ratinho, Luperce Miranda, alguns até criadores de célebres emboladas cujos versos satíricos, ferinos, gaiatos e, às vezes, apimentados, tornaram esse gênero, cada vez mais atraente ao sulista, facilitando a aceitação e a admiração por esses valores.

Esse estilo obteve tanto assentimento no Rio de Janeiro, que a discografia brasileira registra a toada “Caboca de Caxangá”, gravada em 1913, como o maior sucesso do carnaval carioca de 1914, uma conquista do maranhense Catulo da Paixão Cearense e do pernambucano João Pernambuco .

As coisas do Nordeste começavam, então, a ser sentidas e exploradas na música por nomes que, depois, se tornariam famosos na MPB. Pixinguinha, Donga, Pernambuco, Caninha, Palmieri, formaram O Bloco dos Caxangás. Depois, surgiriam Manezinho Araújo, Manuel de Lino, Augusto Calheiros e até Noel Rosa e Almirante, foram impregnados por essa atmosfera. Os Turunas da Mauricéia (*), em 1927, no Rio de Janeiro, com a embolada “Pinião, Pinião”, conquistaram o primeiro lugar na aceitação popular entre tudo o que se gravou para o carnaval de 1928. Estilizando motivos do folclore, bebendo-os com conhecimento de causa, oriundos do berço de onde surgiram, o Nordeste. A partir de suas feiras de interior, suas cantorias, o aboio dos vaqueiros, as pelejas de imortais improvisadores, grupos nordestinos foram se formando e produziram páginas célebres desse cancioneiro para a história de nossa discografia. Surgiram, então, além dos já citados, os grupos Gente do Norte, Voz do Sertão, Alma do Norte, Batutas do Norte, Desafiadores do Norte, entre alguns outros.

A literatura brasileira, na década de 30, através dos seus mais famosos romancistas, foi quem se valeu com maior constância desses valores expressivos, contidos no cantar do povo e na tradição oral de seus contos, lendas, festas, poesias, enfim, nos textos líricos e nas canções folclóricas.

O rádio, veículo de comunicação de massa, surgido na década de 20, só veio abrigar essa manifestações de caráter popular ou folclórico com o crescimento da indústria fonográfica, em meados da década de 30.

A intensa popularidade desse cantar, desse humor, dessa alegria, dessa cultura, dessa alma nordestina, só viria a se acentuar no início dos anos 40, com o advento dos programas de auditório onde, além da presença desses intérpretes diante de grandes platéias, milhares de pessoas estavam, paralelamente, se integrando ao pé dos aparelhos receptores espalhados desde a grande cidade ao pequeno município. E nada era mais atraente do que sentir, de perto, os ídolos que pareciam tão intocáveis através do disco ou nos teatros, onde eram ouvidos e se apresentavam, exclusivamente, para uma elite de alto e, às vezes, médio poder aquisitivo.

Sobre os programas de auditório, disse Luiz Carlos Saroldi em seu livro Rádio Nacional, o Brasil em Sintonia: Esse fenômeno radiofônico, os programas de auditório, teria início na década de 40 e dominaria toda a década de 50. Os anos, sem dúvida, de maior popularidade alcançados pelo rádio desde sua criação.

Foi, exatamente na década de 40, quando um sertanejo, nascido em 1912, numa região onde a poesia brota na flor do mandacaru, na sombra do juazeiro, no canto da Jaçanã, como verdadeira gargalhada, alegrando a paisagem, às vezes sombria e menos promissora do sertão, chegou à grande cidade para marcar a presença definitiva do Nordeste na alma musical brasileira. Seu nome: Luiz Gonzaga do Nascimento. Luiz Gonzaga, porque São Luiz Gonzaga era o santo da devoção do seu pai, Januário e do Nascimento, porque nasceu no mês de dezembro, nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Como todo menino sertanejo, ele foi iniciado na fé e nos costumes da Santa Igreja Católica desde muito cedo. E seu berço, foi embalado no friozinho do pé-de-serra, no aconchego de uma família pobre, sofrida, mas sempre alegre e unida.

A infância de Gonzaga foi toda vivida junto ao pai, consertador de Armokner (harmônica) e tocador do que ele chama de fole, quando se apresentava pelos forrós de pé-de-serra, pelas feiras, nas casas de fazenda e nas festas populares e religiosas. O velho Januário foi sua primeira e mais importante escola. Um tocador reverenciado pelo povo e conhecedor profundo de suas raízes e tradição musical, foi a fonte onde Gonzaga começou a saciar a sede da curiosidade e da busca do saber dos predestinados.

Aos 15 anos o moço Luiz, já adquirira prestígio na região, já assumia, sozinho, suas tocatas ou substituía Januário em outras, quando algum motivo o impedia de se apresentar. Tornara-se um tocador de sanfona, um sanfoneiro, sua fama começava a crescer e a se espalhar por todos os lugares onde ele se exibia, estendendo-se até o Crato, sempre interpretando velhas canções e toadas nordestinas, tão do agrado do seu povo.

Aos 18 anos, durante a Revolução de 30, após uma paixão frustrada, que provocou um desentendimento doméstico, Luiz fugiu de casa e se alistou no exército nacional tendo, inclusive, que mentir sobre a idade, de vez que a permissão só era concedida a maiores de 21 anos.

No exército, ficou conhecido como o Corneteiro 122 e só a partir de 1936, ainda na farda, servindo em Juiz de Fora, voltou a pegar num acordeon e a se atualizar no instrumento sob a orientação de um sanfoneiro chamado Dominguinhos Ambrósio.

Em 1939, recebendo baixa da vida militar, seguiu para o Rio de Janeiro, a capital da República. Corria então, o mês de março e aconteciam os primeiros grandes programas de auditório e, entre eles, destacavam-se os programas Silvino Neto, Ari Barroso, Programa do Casé, Renato Murce. Gonzaga ouvia as canções em voga no rádio, a influência européia e americana na música brasileira da época da guerra. Começou a formar, então, o seu repertório com as músicas mais ao gosto do público, tocando valsas, tangos, fox-trots, boleros. Tocava todos esses gêneros e inibia seu talento nato, suas raízes, sua alma musical nordestina. O seu intuito, naqueles tempos, era, unicamente, o de sobreviver e, para isso, apresentava-se nos bares, nas esquinas, nos botequins e até nos mangues - zona do baixo meretrício - e, depois, passava o pires para recolher os trocados que lhe garantiriam mais um dia sem fome. Em seu depoimento, referindo-se a essa fase de sua vida, ele afirmou com tristeza: A minha música regional, aquilo pra mim, não tinha valor ali. Eu achava que era impraticável.

Foi quando, em 1940, numa das noitadas pelos bares da vida, um grupo de universitários cearenses, assíduo freqüentador das suas apresentações, interpelou-o:

___ Caboclo, você é do Norte, por que não toca coisas da sua terra?

Ao que Gonzaga respondeu:

___ É, lá eu tocava música de fole de oito baixos.

Os estudantes, então, retorquiram:

___ E por que você não toca aí?

___ Porque não dá.”

___ Olha que dá! Se procurar, dá! - insistiram os estudantes.

Foi assim que Gonzaga, animado pelos irmãos nordestinos, surpreendeu aos gringos, marinheiros, boêmios, prostitutas e ao músico da época, certo dia, sapecando ao pé daqueles ouvidos atentos e curiosos, a sua música de pé-de-serra, o vira e mexe, o ritmo quente e balançado do chamego bom de sua gente.

Naquele mesmo ano, ele chegava ao programa de rádio mais popular da época, o de Ari Barroso. E, segundo ele contou em diversos depoimentos, dirigiu-se ao célebre apresentador nestes termos:

___Seu Ari, tenho um negocinho do Norte pra tocar agora. Não vou tocar valsa. Tem uma vaga aí?

Conforme afirmou em seu depoimento, Ari o encarou com aquele olhar avaliador e decidiu:

___ Bota aí o homem!

Luiz Gonzaga tocou nesse dia, no programa, a verdadeira e pura música do Nordeste e ganhou o prêmio maior: nota cinco. Daí para o disco e para o contato com gente famosa, foi um pulo, embora durante o período da guerra, a discografia brasileira muito pouco tenha registrado de sua música como intérprete. Foi apenas o começo e sua atuação tornou-se mais evidente como acompanhador de outros valores da época e como solista de valsas, polcas, mazurcas, serenatas e rancheiras.

Através de Genésio Arruda, a quem acompanhara na primeira gravação, Luiz Gonzaga recebeu um convite para tomar parte do seu show num teatro, com uma pequena participação. Foi a grande oportunidade de aparecer para um público diferente do habitual, gente relacionada com o meio artístico, onde o sucesso de suas músicas, interpretadas no programa de Ari Barroso, como por exemplo, “Vira e Mexe”, vinham dando o que falar. Aceitou o convite com a cabeça cheia de sonhos e idéias, como ele mesmo afirmou depois, em depoimento cedido a Sinval de Sá, na década de 60:

Eu tinha aquela música no coração, procurava expressão para ela mostrar o quanto valia, o que tinha de autêntico. Queria mostrar, sobretudo, que ela não era só aquelas emboladas mal arranjadas por certos artistas, que não a conhecia realmente no que tinha de mais verdadeiro. O sertão dos rios cheios, de secas, de milho verde, de gado caindo de fome, de arribação fugindo, de acauã cantando, da asa-branca chorando nas quebradas, das farinhadas, das moagens, das feiras, dos forrós gostosos, do cheiro bom de mulatas, das brigas de foice, de buchos rasgados nas festas das missões dos cangaceiros.

Gonzaga respira forte o ar saudável do seu futuro caminho. Precisa cantar aquilo tudo! E, ainda no teatro, logo depois da apresentação, vem o convite: Vá amanhã na Rádio Clube do Brasil, procure o Renato Murce, ele é meu filho. Seu dia vai chegar, rapaz.

Assim, Luiz Gonzaga, um forte do sertão, ingressou no rádio tocando as suas músicas, as coisas de sua terra e chegou até a ser anunciado, no início de sua carreira, como Luiz Gonzaga, o maior sanfoneiro do Nordeste, quiçá do Brasil. Cantar, no entanto, não lhe foi permitido. Sua voz não agradava e havia, inclusive, uma proibição formal na Rádio Tamoio: Luiz Gonzaga é proibido de cantar por ter sido contratado como sanfoneiro e não como cantor.

A esse respeito, Manezinho Araújo, seu colega de trabalho, chegou até a ser grosseiro quando, cara a cara com Gonzaga, disse-lhe que tinha voz de taboca rachada. Átila Nunes, no entanto, possuía um programa na mesma rádio com patrocínio exclusivo, chamou para si a briga e convidou Luiz Gonzaga para o programa, assegurando-lhe o direito de cantar. Diante de tal e primeira oportunidade, Gonzaga não se fez de rogado e cantou. Iniciou com “Dança Mariquinha” e, em seguida, interpretou duas músicas que se tornaram famosas até os dias atuais. A primeira, “Dezessete e Setecentos” que, juntamente com a outra, “Xamego”, foram temas que ele havia dado a Miguel Lima para colocar letra. No primeiro tema, dizia nos versos iniciais:

Eu lhe dei vinte mil réis

Pra tirar três e trezentos,

Você tem que me voltar

Dezessete e setecentos (...)

E da outra, são os seguintes os versos iniciais:

Todo mundo quer saber

O que é o xamego

Ninguém sabe se ele é branco

Se é mulato ou se ele é negro (...)

Foram os primeiros sucessos de Gonzaga nos auditórios. As cartas começam a chegar, mas a direção da emissora não se deixou sensibilizar e dispensou-o, sob a alegação de que seu contrato terminara. Surpreendido, Luiz Gonzaga afastou-se da Rádio Tamoio e, em um dos seus depoimentos, relembrou: Eu me sentia frustrado, de mau humor. Não podia atender àquela gente, não podia dar vazão ao meu desejo.

Acreditando em si, Gonzaga, não desistiu. Sua persistência foi sempre uma de suas mais fortes características. Um encontro com o cearense Cezar de Alencar, ídolo dos auditórios do Rio de Janeiro, trouxe-lhe novas esperanças. Cezar e alguns outros artistas de quilate, planejou, segundo ele, debandar da Rádio Tamoio com destino à Nacional, para onde Renato Murce pretendia levar o programa Alma do Sertão e o nome de Luiz Gonzaga estava incluído no rol de artistas que pretendia carregar consigo.

Daí em diante, passou a ser apresentado na Rádio Nacional para todo o Brasil por Cezar de Alencar e Paulo Gracindo, como o grande representante do sertão e de sua música. E teria sido o próprio Paulo Gracindo quem o batizara de Luiz “Lua” Gonzaga e pela primeira vez assim o anunciara, pois seu rosto, redondo e cheio, lembrava-lhe uma lua, o luar bonito do sertão.

A partir de então, não apenas o Sul tomou conta do Brasil folclórico e musical, representado pelo gaúcho Pedro Raimundo, mas também o Nordeste se fazia presente através do talento de Luiz Gonzaga. E, se de um lado Pedro Raimundo se apresentava vestido a caráter; do outro, Luiz Gonzaga não deixou por menos. Mandou pedir a sua mãe, Santana, que lhe enviasse um chapéu de couro e, assim paramentado, numa mistura de cangaceiro e vaqueiro, passou também a sacudir os auditórios, tornando conhecidas outras criações feitas com Miguel Lima, que atingiam, em cheio, o gosto do público, como foi o caso de “Cortando o Pano” e “Penerô Xerém”.

Na realidade, se iniciou no disco contratado pela RCA, a partir de 1941, como músico, gravando, inicialmente, choros, valsas e até um bolero de Agostin Lara, intitulado “Farolito” e, em seguida, sucessos lançados no rádio e que o povo até já sabia cantar. Foram os primeiros passos em direção à glória, mas Gonzaga sentia a necessidade de ser mais arrojado com relação à música do Nordeste. Seu estudo se fizera na universidade da vida e ele tinha consciência de que o seu parceiro, Miguel Lima, não possuía a vivência, nem conhecimentos suficientes para um maior aprofundamento sócio-musical, que atendesse aos objetivos de seu projeto. Para isso precisava encontrar outro parceiro. Em sua busca, descobriu alguns com quem fez relativo sucesso, como Raul Torres, com quem compôs “Mula Preta, e Assis Valente, já famoso na MPB, em cuja parceria criou “Sou pão Duro”.

Nenhum dos dois, entretanto, representava aquilo que desejava. Foi, quando partiu em busca de Lauro Maia, nordestino, dono de alguns sucessos interpretados pelo conjunto Quatro Ases e um Coringa. Lauro, porém, não se dispunha a enfrentar a situação. Achava estar Luiz a sonhar muito alto. Mesmo assim, propôs-se a apresentá-lo ao seu cunhado, Humberto Teixeira, outro cearense, advogado e já com algumas incursões na produção musical. Esse dia marcou, sem dúvida, um encontro inesquecível com sabor de Nordeste. O primeiro tema que Gonzaga ofereceu a Humberto, a saudade, bateu, de imediato, na fraqueza daquele outro nordestino e gerou os seguintes versos:

No meu pé-de-serra

Deixei ficar meu coração.

Ai, que saudade tenho,

Eu vou voltar pro meu sertão.

Nascia, assim, um dos maiores parceiros de Luiz “Lua” Gonzaga. Realizava-se, afinal, o projeto dos sonhos daquele nordestino tão simples, que não tinha consciência de sua própria importância como o elemento mais forte, o ponto principal para transformar tudo em realidade. Mas, o folclorista Luís da Câmara Cascudo, apreendeu essa importância quando, com muita propriedade, disse sobre Gonzaga: Ele próprio, Gonzaga, é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. O sertão é ele, a paisagem pernambucana, águas, matas, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais, voltam a viver, cantar e sofrer, quando ele põe os dedos nos teclados da sua sanfona. Luiz Gonzaga é a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana.

Eram as raízes de Gonzaga, que mais fortaleciam sua importância. Elas interferiam de maneira natural e espontânea nas trovas, cujo resgate, através do cancioneiro popular, tornou-as perenes. Vejamos, por exemplo, nos versos copiados em meio ao povo pelo poeta cearense Juvenal Galeno:

Vou armar a minha rede

Onde corre a viração

Nos braços de uma morena

Junto do seu coração.

A viola está dizendo

Que a prima sente uma dor

Aproveita, minha gente,

Este baião gemedor.

E, exatamente, dessas temáticas e dos ritmos nordestinos, oriundos do próprio rincão, frutos da criação alegre e voluntária de seu povo, do seu complexo cultural, que Gonzaga, portador vivo desse contexto, amparado pela sensibilidade, cultura e inteligência de Humberto Teixeira, lançou para o Brasil, urbanizando seus traços primitivos, o mais popular dos ritmos do sertão: o baião.

Esse ritmo era, já diziam os estudiosos, o baião, estranho casamento do sistema tonal com modos medievais, semelhantes aos cantos gregorianos, teve sua batida uniformizada para facilitar a evolução dos pares. Antes, era tirado do bojo da viola, enquanto os cantadores preparavam o desafio. Dos primitivos pandeiro, botijão, rebeca e viola, passava-se a uma síntese instrumental, triângulo, zabumba e sanfona, agora de 120 baixos, substituindo o fole de oito baixos dos sambas de pé-de-serra.

Em meio à influência da música estrangeira à época, e após a II Segunda Guerra, com os grandes musicais do cinema e a visita dos ídolos internacionais ao País, explodia um artista brasileiro, nordestino, sanfoneiro, tocando e cantando ritmos quentes de sua terra, para um público cada vez maior, em coretos, em cima de caminhões, em praças públicas, de qualquer jeito, em qualquer canto, a qualquer hora.

Tão grande o sucesso das produções dessa dupla de 1946 a 1950, que o crítico Tarik de Souza comentou: Foi tomado de assalto o incipiente mercado brasileiro. Tanto que as prensa da RCA foram obrigadas a trabalhar quase que exclusivamente para Luiz Gonzaga. Tal foi o êxito alcançado pelo baião e seus congêneres, em especial a toada, o forró e o xaxado, que Humberto Teixeira pleiteou e conseguiu uma cadeira de Deputado Federal pelo seu Estado.

Da obra dessa dupla imortal da MPB, vários são os sucessos cujos temas foram extraídos da poesia popular e folclórica. A mais marcante, sem dúvida, “Asa-Branca”, cantiga do alto sertão do Nordeste, tem em seus versos primitivos um tema folclórico da Borborema Ribeira Pajeú, anotados pela maestro Batista Siqueira em seu livro Os Cariris do Nordeste:

Não chore não, viu?

Nem vá chorar, viu?

Que a vida é essa

Seu amor torna a vortá.

Asa-branca pequenina

Já voou do meu sertão

Por falta d’água morreu meu gado

Morreu de sede o alazão.

Gonzaga, como transmissor desses temas aos seus parceiros, preocupava-se com a influência, sobre eles, do urbanismo. Preocupava-o, também, as imposições da estilização, cada vez mais crescente, no baião, que se tornou um ritmo internacional, como o samba. Percebia-se que o urbanismo se evidenciava, sempre mais, nas composições de Luiz em parceria com Humberto. Até que, ao final dos anos 40 e durante toda a década de 50, Gonzaga encontrou, no seu segundo grande parceiro, o médico pernambucano José Dantas, o retorno ao telúrico sertanejo, onde os baiões, as toadas e demais ritmos nordestinos projetaram, com muita força, através de versos, os aspectos sociais e até políticos da região mais pobre e sofrida do país.

A prova disso está na advertência contida na música “Vozes da Seca”, que se antecipou, pelo conteúdo dos seus versos, aos que vieram a ser criados mais tarde, pela geração dos festivais, tida como a geração inventora da canção de protesto:

Seu doutô os nordestinos

Têm muita gratidão

Pelo auxílio dos sulistas

Nessa seca do sertão.

Mas, doutô uma esmola

A um home que é são

Ou lhe mata de vergonha

Ou vicia o cidadão.

Um protesto dos mais fortes, calcado na sabedoria popular, num extravasar de revolta do homem simples e honesto do povo, identificando-se com uns versos resgatados por Rachel de Queiroz em O Quinze, de uma cantiga de cego para retirantes encontrada nos campos de refúgio urbano, a dizer sobre o seu destino.

No céu entra quem merece

No mundo vale quem tem

Eu como tenho vergonha

Não peço nada a ninguém

Que me parece, quem pede,

Ser cativo de quem tem.

Discorrendo sobre a colaboração de Zé Dantas a Luiz Gonzaga, Mundicarmo Ferreti, em seu livro Baião de Dois, destacou o quanto foi altamente proveitosa para a MPB e em especial para o gênero nordestino em desenvolvimento na época. Poeta, identificado com o povo, Zé Dantas ajudou a trazer para essa música veiculada pelos meios de comunicação de massa o humor nordestino, escrevendo verdadeiras crônicas do Nordeste, pintando expressivos retratos do homem do sertão.

Ao buscar inspiração na alma do povo, Zé Dantas, nem por isso descuidou-se dos ajustes, adaptando ao urbano sem, no entanto descaracterizar aquela poesia. Foi mais uma reelaboração do folclore e, talvez por isso mesmo, longe de levar à extinção dessa manifestação, contribuiu para reavivar o gosto do povo pelo seu cancioneiro.

Se a política havia distanciado Humberto Teixeira de Luiz Gonzaga, este último encontrou um parceiro à altura na figura jovem de Zé Dantas, que com sua admiração pelo sertanejo, pela literatura popular, pelo improviso e criatividade dos cantadores, do violeiros, enfim, pela gama da subsídios culturais emanados do nordestino, fez sobreviver, sob a batuta de Gonzaga, uma criação musical sem precedentes na história da MPB. E, certamente, nunca, até os dias atuais, na narrativa da discografia brasileira, uma música se fez tão representativa, tão legítima, tão mantenedora das raízes culturais e folclóricas de uma região

Foram muitos os sucessos musicais dessa dupla na história da discografia brasileira. Vale o registro de alguns desses sucessos como ilustração de tudo sobre o que se discorre aqui. Assim, “Pisa no Pilão”, gravada em 1961, é um exemplo de como, além de trazer a batida no bojo da viola, forma primitiva do baião, informa sobre atividades no trato do milho.

Se janeiro é mês de chuva

Fevereiro é pra plantá

Em março o milho cresce

Em abril vai pendurar

Em maio tá bonecando

No São João tá bom de assar

Mas, em julho o milho tá seco

É tempo morena pra gente pilá.

Um outro exemplo informativo, é o que elucida a procedência do ritmo xaxado, que está contido de forma bastante clara na música “Olha a Pisada”, cuja letra promove a mulher rendeira e traça informações a respeito do cangaço e do seu rei, Lampião.

Olê mulé rendêra

Olê mulé rendá

Chorô por mim num fica

Soluçô vai no borná

Assim era qui cantava

Os cabra de Lampião

Dançando e xaxando

Nos forró do sertão.

Entrando numa cidade

Ao sair dum povoado

Cantando a rendeira

Se danavam no xaxado.

Eu qui me criei na pisada

Vendo os cangaceiros na pisada

Danço com sucesso

Na pisada de Lampião.

Olha a pisada, tum, tum, tum, tum...

Outro evidente traço da relação entre o folclore e a música popular, torna-se bem claro, através das superstições oriundas do comportamento das aves da região nas diversas épocas do ano. A música “Acauã”, gravada em 1952, exemplifica esse fato de forma perfeita.

Acauã vive cantando

Durante o tempo do verão

No silêncio das tardes agoirando

Chamando a seca pro sertão.

Teu canto é penoso e faz medo

Te cala Acauã

Que é pra chuva voltar cedo.

Toda noite no sertão

Canta o João-Corta-Pau

A coruja mãe da lua

A peitica e o bacurau

Na alegria do inverno

Canta sapo, jia e rã

Mas na tristeza da seca

Só se ouve Acauã.

Da mesma forma que as aves, também os bichos com suas histórias fantásticas, estão ajustados dentro desse contexto folclórico. Bichos oriundos, tanto da literatura brasileira em geral, quanto da de cordel, como é o caso de o gato misterioso, o sapo do Cariri ou da Jaçanã, que se tornou má, percebidos com o humor sutil e bastante característico do improviso do nosso cantador-embolador. “Siri Jogando Bola”, gravada em 1956, confirma isso.

Lá no mar

Vi dois Siris jogando bola

Lá no mar

Vi dois Siris bola jogá.

Fui passeá

No país do Tatu-Bola

Onde o bicho tem cachola

E até sabe falá....

Ainda no seu livro sobre o folclore, Cariris do Nordeste, Batista Siqueira deixou registrada uma frase muito comum nos sambas de pé-de-serra quando, de repente, em meio à alegria geral, um encrenqueiro resolve aprontar alguma confusão e promove escuridão no recinto. Nesse momento alguém grita: Apagaram o candieiro e derramaro o gás. Luiz Gonzaga e Zé Dantas, resgataram essa espécie de costume, dosando-o com muito senso de humor.

Eu nesse coco num vadeio mais

Apagaro o candieiro, derramaro o gai.

Apagaro o candieiro, derramaro o gai

Coisa boa nesse escuro, já sei que não sai

Já não estão mais respeitando nem eu que sou pai

Pois me deram um beliscão, quase a calça cai

Por isso nesse coco não vadeio mais.

Antes de “Derramaro o Gai”, gravado em 1956, já a dupla referia-se aos costumes comportamentais nos forrós, quando em 1949 gravou o baião “Forró de Mané Vito”.

Ricardo Cravo Albin, em seu programa, MPB 100, na rádio Roquete Pinto, quando focalizou Luiz Gonzaga, afirmou, entre outras coisas: Luiz Gonzaga nunca plagiou o folclore - a música anônima escrita pelo povo através de gerações. O que fez com seus parceiros e com genialidade, foi embeber-se e inspirar-se no complexo sócio-cultural de suas origens, raízes, para confeccionar uma obra única e de raro vigor.

Sobre esse assunto, numa entrevista à TV Bandeirantes em 1981, citada no livro Baião de Dois, de Mundicarmo Ferreti, na página 67, o próprio Luiz Gonzaga desabafou: No sertão ninguém era autor de música. Na minha região essa música era tocada por meu pai, mas não era dele. “Asa-Branca”, por exemplo, eu desde menino que gostava de tocá-la e de criar versos para ela, chegando até a ser identificado com ela. Ao sair de lá o pessoal dizia: Foi s’imbora a Asa-Branca, se lembrando de mim...

Sobre o gênero baião, que na década de 50, principalmente, tomou conta do Brasil, chegando inclusive a internacionalizar-se, Gonzaga se expressou em “Tudo é Baião”, gravado em 1952, da seguinte forma.

Andam dizendo que o baião é invenção

Quem disse isso nunca foi no meu sertão (...)

E finaliza:

Até as cantigas de Lampião

Na minha terra tudo é baião.

O objetivo desse trabalho, ao tratar do assunto LUIZ GONZAGA E O CANTAR NORDESTINO foi o de, apenas, registrar alguns subsídios que tornem mais clara e evidente a importância latente, e talvez a maior de todas, de Luiz Gonzaga na representação musical de sua gente, particularmente no que concerne à discografia brasileira, no momento em que se procura resgatar a verdade sobre essas patentes nas artes populares para as gerações futuras. Afinal, não podemos esquecer as palavras de Zé Dantas quando se referia à pesquisa: Cabe aos estudiosos do folclore descobrir a verdadeira origem das tradições populares. Quando não divulgamos na íntegra o que recolhemos no seio do povo, atrapalhamos o trabalho dos estudiosos na interpretação do fato folclórico.

Criticado por uns pela falta de capacidade criativa, por outros, pela apropriação indébita e, por alguns, pela macaqueação das produções artísticas do povo, a verdade é que essa memória nunca foi tão preservada quanto por Luiz Gonzaga e os seus parceiros, independente do que diz a mídia eletrônica e escrita.

Os parceiros, homens de grandes possibilidades no contexto cultural, criadores de muitos e importantes sucessos, mantiveram sempre a característica do projeto inicial de resgate que Gonzaga estabelecera. Entre eles estão nomes tais como Onildo Almeida, Raul Torres, J. Portela, Sebastião Rosendo, João Silva, Guio de Moraes, David Nasser, José Marcolino, Severino Ramos, Patativa do Assaré, Hervê Cordovil, Nelson Barbalho, Miguel Lima, todos emprestando as suas vivências, suas poesias e suas inspirações mais felizes em prol da continuação das tradições culturais nordestinas. E, na verdade, a cultura desse povo do Nordeste nunca será tão bem representada na discografia brasileira quanto o é por Luiz Gonzaga, que no seu cantar, enfoca as vaquejadas, os folguedos, as novenas, as festas, casamentos, forrós, danças, superstições, canções de ninar e até as práticas medicinais do seu povo.

Muito mais é focalizado no seu cantar. Desde o aboio - aquela forma de amansar e transportar o gado - até o artesanato, as técnicas agrícolas e as formas diversas de comercialização da riquíssima produção regional para a sobrevivência do próprio homem. A forma mais abrangente de exemplificar esse enfoque, está na composição intitulada “Feira de Caruaru”, um baião do compositor pernambucano Onildo Almeida, gravado em 1957, pelo Rei do Baião.

A feira de Caruaru

Faz gosto a gente vê

De tudo que há no mundo

Nela tem pra vender

Na feira de Caruaru

Tem massa de mandioca

Castanha assada, tem ovo cru

Banana, laranja, manga

Batata doce, queijo e caju (...)

É de fundamental importância para qualquer região a divulgação de sua cultura e costumes, seja através da literatura, da pintura da música. Os nordestinos, detentores de uma das culturas mais ricas e diversificadas do País, devem agradecer e saudar a todos os que, de alguma forma, contribuem para essa divulgação. Os mais expressivos nomes da literatura brasileira, merecem a louvação e entre eles destacam-se Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascenso Ferreira, Hermilo Borba Filho, José Américo de Almeida, Ariano Suassuna, Luiz Marinho e tantos outros, estudiosos e vivenciadores dessa cultura regional. Igualmente, na área musical, tem-se que louvar também inúmeros nordestinos que se destacaram nesse resgate cultural.

Assim, além de João Pernambuco, Minona Carneiro, Manezinho Araújo, Augusto Calheiros, Stephana de Macedo, a dupla Jararaca e Ratinho, Gilvan Chaves, Gordurinha, Luiz Vieira, não se pode esquecer os que receberam influência direta de Luiz Gonzaga, como Caetano, Gil, João do Valle, Geraldo Vandré, Quinteto Violado, Alceu Valença, Dominguinhos, Alcymar Monteiro, Nando Cordel, Jorge de Altinho,Elba Ramalho Isso, só para citar alguns.

Todos, prestando serviços inestimáveis a essa causa nordestina, cuja bandeira mais alva e pura, continua tremulando no alto da coragem e do talento nordestinos, desde quando erguida com destaque na MPB pelo saudoso e inesquecível “Rei do Baião”, Luiz Lua Gonzaga que, ainda no dizer de Tarik de Souza, famoso crítico musical, fez mais pelo Nordeste do que a maioria dos seus políticos reunidos, colonizou o Su e o sudeste ao contrário ao seu modo, fez o ritmo nordestino dominar aquela região até os anos atuais.

Gonzaga só foi afastado um pouco da cena, quando os sons das guitarras da Jovem Guarda, se fizeram ouvir mais fortes. Retornou, no entanto, como guerrilheiro, pelas cidades do interior, pelas praças, pelas ruas, pelos cinemas, na propaganda política, nos shows, pela boca dos universitários, através da geração dos festivais, pelas casas de forrós, desde os de pé-de-serra aos mais chics, todos com cheiro de povo.

O filho do sanfoneiro Januário, que deixara o sertão na década de 30, malero, bochudo, cabeça de papagaio, zambeta, pode não ter enricado, mas tornou-se símbolo cultural, subiu em palanque de presidentes e animou jantares de reis, chegando até a cantar no Olimpia, de Paris, em 1986. Além do mais, Luiz Gonzaga, deixou registrada na discografia brasileira, mais de 600 músicas. Sua vida ativa com sua sanfona branca foi cepada no dia 02 de agosto de 1989, quando encetou a grande viagem. Renato Phaelante;pesquisador musical fonográfico.

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